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quarta-feira, 26 de janeiro de 2011

Carta 2

Os esbirros quebram, num torniquete, um braço a uma das suas vitimas, para desta obterem absurda confissão – evoca-se o poema “Cadeias” de Tomás da Fonseca.

Pamp., 30 de março de 1932 – prezado amigo: Logo que tive conhecimento de tua prisão, procurei indagar do deu paradeiro, Como vivo afastado da cidade, só o consegui quando me veio às mãos a tua carta. Lamento a tua situação. Mas. Fica certo que nós trabalharemos por ti. É necessário que indiques os nomes dos salteadores da tua e da nossa liberdade, os nomes desses sórdidos rafeiros a serviço da tirania que asfixia o povo. Quanto a nós, o autêntico povo, não nos deixaremos ludibriar pelas artimanhas, nem tampouco pela violência dos tais rafeiros. Podes, em vez de “beijos”, dizer abertamente que te espancaram, que nós já conhecemos os hábitos dos esbirros da P.V.D.E. Diz-nos qual o crimede que te acusam, para que fique bem claro para nós. Por grava que seja, não tem se quer aproximação com os atos de “bondade” praticados pela cega justiça da P.V.D.E., que não poupa velhos nem novos, a todos espancando barbaramente, a ponto de mutilar e cegar as suas vítimas. De um pobre-diabo sei eu, que, andando a apascentar ovelhas, encontrou uma bolsa um maço de papéis, que se verificou depois de serem manifestos comunistas. Pois, apesar do pobre nem sequer saber ler, a Policia prendeu-o e, passado algum tempo, devolveu-o à liberdade, mas com um braço quebrado e tanto torcê-lo num torniquete para arrancar-lhe absurda confissão. Este e muitos outros constituem a enorme legião das vitimas do Estado Novo, que um dia hão-de julgar os seus algozes.

Agradeço-te a nova letra, que não conhecia, de “A Portuguêsa”, e em troca te envio-te o seguinte poema de Tomás da Fonseca:

Cadeias (1)

Casas erguidas para a desgraça,

Túmulo e cárcere, lar e caverna,

Verga-se de ódio, quando se passa,

Vergonha eterna da nossa raça,

Dum povo livre vergonha eterna.

Dia de gala, dia de festa,

E os miseráveis na escuridão.

Ó tu que passas na vida honesta,

Abre o sorriso, que inda resta,

Aos condenados dessa prisão.

Que, antes de andarem pelas cadeias,

Uns foram livres, foram já nobres,

Vivendo outros em alcatéias,

Pedindo esmolas pelas aldeias,

Moços de cegos, filhos de pobres.

Quantos na guerra foram soldados,

Amando a pátria do coração!

Mas tudo acontece: foram alvidados,

E, em dia presos, como malvados,

Quando na rua pediam pão.

Na vida heróica da juventude,

Cavando a terra, foram gigantes.

Da primavera na plenitude,

Braços de ferro na vida rude,

Sonharam pátrias como houve dantes.

E agora, mortos prá vida honrada,

Morda a ventura, que um sonho foi,

Adeus, lavoura, adeus, enxada!

Adeus, mão forte, do sol queimada,

A guiar nas leivas o arado e o boi!

E os condenados dizem consigo:

- Que vida amarga, quê negra sorte!

De tanto amigo nem um amigo,

Que este calvário suba comigo!...

Benvinda a hora de nossa morte!

Cabeças loucas de indignação

Rugem na sombra, como leões.

Ó tu, que passas, dá-lhe o teu pão,

Dá-lhe um bocado do coração,

Que eles têm mortos os corações!

Casas soturnas, metem-me medo

Estas cadeias que o sol não vê.

Sente-se passos, sobre o degredo,

Porque fizerem sobre Deus quê.

Gritos na sombra – quem é que dá?

Tiros de bala – quem matarão?

Ó reis, cautela, que o sol vem já

Subindo, e os gritos ouvem-se cá.

Há bocas hiantes de indignação.

Bocas hiantes! Mas se é já certo

O dia grande das multidões!

Sobre as cabeças há o céu aberto.

Que importam balas, se já vem perto

O peito de aço das legiões?

Povo em revolta – guilhotinai-o!

Onda que passa – vão agarrá-la!

Povo faminto – loucos, deixai-o!

Que valem armas? Força dum raio

Não se aniquila com bala.

Podeis lançá-lo na escuridão,

Vergá-lo a ferros, chumbá-lo a aço...

E a dor e o luto no coração,

Que as negras furnas abrir-se-ão,

Mal o seu grito voe no espaço.

Se, ao vir da aurora, se apresentar,

Punhos erguidos, olhos em fogo,

As grossas portas hão-se estalar,

Serão abertas de par em par,

E essas voragens desertas logo.

Porque é por eles, os oprimidos

Que a vida anseia, que o mar se agita.

Exploram minas, veios perdidos,

E são lançadas, como bandidos,

Nesses sepulcros que a morte habita!

Ai, quantas vidas ali paradas!

E, quantos trabalhadores!

Ó pão, ó vida, que é das enxadas,

Que é das choupanas despovoadas,

Autrora templos de colmo e flores?

Nessas cabeças de revoltados

Fermentam gênios, dormem idéias...

Ai, sonhos belos desperdiçados,

Luz e progresso de olhos vendados,

Trabalho livre preso em cadeias!

Se o amor e o ódio, postos em foco,

Incendiassem nada mais queria:

Serieis livres, que o ódio é louco,

E o meu é tanto que, posto em foco,

Até muralhas incendiaria.

Mas nem um fio de claridade

Vos chega, na vida toda.

Nem céu, nem terra, nem liberdade...

Sois como filhos na orfandade,

Sois como noivos mortos na boda.

Ódio que sobre aquelas casas,

Túmulo e cárcere dos deserdados...

Cortava os braços pra lhes dar asas,

Ia descalço por sobre brasas,

Para não vê-los encarcerados.

Sem mais, um abraço para todos os amigos, do Zola.

(1) Do livro “Os Deserdados”. De Tomás da Fonseca, edição da Livraria Lello & Irmão Porto, com prólogo de Guerra Junqueiro.

Extraído:

Livro: Na Inquisição do Salazar

Pagina: 51 á 54

Autor: Luiz Portela e Edgart Rodrigues

Ano: 1957

Editora: Germinal

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