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quarta-feira, 12 de janeiro de 2011

OITICICA CONTESTA RUI BARBOA


José Oiticica, então uns dos mais brilhantes articulistas do “Correio do Amanhã”, e um dos mais aguerridos polemistas, manejava a sua pena com invulgar inteligência a serviço da questão social. Poder-se-ia dizer que transformara sua caneta numa espada que, esgrimia contra os demais contra os mais hábeis espadachins da política e das letras, que de algum modo se valiam ou exploravam o trabalhador, a sua boa fé, a sua ingenuidade, a sua falta de instrução e de cultura. São peças de grande importância nesses duelos, os discursos e os artigos que escreveu contra as eleições, principalmente contra o Dr. Evaristo de Morais que se dizia candidato do proletariado, que falava em nome do proletariado com o aval do Papa do direto romano, o Dr. Rui Barbosa.
Contra estes dois tribunos de projeção, mais que desejavam que continuasse o governo, o estado com toda a sua complicadíssima engrenagem burocrática, que queriam conquistar lugares no parlamento sem pensar em modificar as condições sub-humanas em que viviam os explorados, famintos e analfabetos operários, marginalizados da sociedade, classe aparte, que produzia riquezas em nome do dever e que não insufruiam seu quinhão em nome de um falso e velhaco direito.
É, pois, para darmos uma idéia do lutador, do idealista, do gigante do saber que foi José Oiticica, do polemista que empunhava a sua pena como um estilete em defesa desse proletariado, que transcrevemos um dos seus artigos institulado:

“Ao Sr. Dr. Rui Barbosa
Extraordinário mestre:
Desde os quinze anos, habituei-me a ler tudo quanto V. Ex. (1) escreve ou diz livros, discursos, conferências, pareceres, artigos, acompanhando o pensamento de V. Ex. da campanha abolicionista à civilista, das lições de calkins às finanças da republica, do prefacio do Guliver às cartas de Inglaterra, de O papa e o concílio ao parecer sobre o ensino, do célebre artigo Pornéa à série de Liquidação final, à famosa Réplica, a conferencia de Buenos Aires, etc. etc...
Esse culto é tanto mais honroso para mim quanto somos, em tudo o mais, diariamente oposto: V. Ex., apesar do prefácio ao livro de Janus, é católico, apostólico e romano, não sei porque ainda não excomungado; V. Ex. Sempre foi, é e será político, e eu sempre detestei, detesto e detestarei a política; V. Ex., é homem do direito, das leis, advogado incomparável, eu anti-jurista, sujeito para quem a fonte das desgraças é o direito, e um dos malfeitores da sociedade o advogado; V. Ex., resumamos, é republicano ou monarquista (não sabemos bem, nem eu nem V. Ex.), em todo caso conservador, amigo do Estado, defensor da ordem legal, anti-socialista; eu nem republicano, nem monarquista, nem democrata, vendo como vejo na ordem legal a compressão legal, na democracia a seleção das incompetências.
“Anarquista”! Gritará V. Ex. e, em torno, os amigos de V. Ex., padres e juristas, generais e condes, políticos e comerciantes, ouvirão trons de dinamites, sentirão fedor de pólvora, verão punhais erguidos. O Sr. Arcoverde benzerá V. Ex., o Sr. Chefe de policia alarmará secretas, o Sr. Modesto Leal reforçará a burra ou as burras.
Peço a todos calma. Nunca surrei ninguém, nunca matei ninguém, honro pai e mãe, não cobiço a mulher do próximo, dou pão a quem tem fome, visto os nus, não cobro a ninguém, obedeço fielmente as leis do meu país, cumpro os meus deveres meticulosamente, não faço operação por quatro contos, não exijo vinte por cento de inventários, não prorrogo sessões da câmara remuneradas, não ganho mil réis de cada firma reconhecida, não faço contrabandos, não especulo, não fumo, não bebo, não jogo, não conheci Bolo-Pachá.
Creio-me, modéstia à parte, um sujeito sofrível, nem ótimo para santo (tenho bom gosto), nem ruim para xadrez, V.Ex., esta tranqüilo, não? Ouça-me, pois. Li a expressiva carta de V. Ex., ao Sr. Evaristo de Morais, candidato popular, candidato, ainda mais, do operariado. Rogo permissão para lamentar, antes de tudo, o operariado, o operariado brasileiro. Volvamos, porém, à carta expressiva.
V.Ex. diz que nunca fui socialista, e ninguém mais longe de o ser, acrescenta: “Mas reconheço, pondera, com todas as almas justas, que, entre as reivindicações das classes operarias, muitas há equitativas, irrecusáveis , necessárias à boa organização da sociedade”. Infelizmente, não declara quais as reivindicações justas; basta, a confissão de serem justas algumas delas para concluir-se que exagerou asseverando que ninguém mais longe de ser socialista do que V. Ex; i isso porque a gente no mundo que não reconhece nenhuma. Tomo, portanto, a liberdade de supor V. Ex. um bocadinho socialista, uns dois por cento, mais ou menos. E sem querer, vai na estrada do anarquismo, porque anarquista é o socialista que requer cem por cento das tais reivindicações. Vai, não, iria se diante de V.Ex. não se levantassem dois Andes de preconceitos favoráveis ao conforto, ao lucro, à paz de espírito, à superioridade; à religião e o direito. São eles que mantêm a organização atual para V. Ex., e para os de cima e honrosa para os trabalhadores. Essa organização permite que V. Ex. exija, cem, duzentos, trezentos contos por causa, para mostrar, nos tribunais , que os dois mil contos que fulano tem, pertencem a sicrano. Esse extraordinário trabalho ( podia referir-me, por exemplo, ao engenhoso parecer de V.Ex. sobre os bens de mão morta) merece o prêmio de um quinhão farto de riqueza humana. Quem produziu essa riqueza? Os trabalhadores do mundo inteiro, nacionais ou estrangeiros.
Dirá: “Para escrever tal parecer, para intentar uma ação, tive de estudar como ninguém, meu pai gastou muito dinheiro com educar-me, dispendi somas grossas com a biblioteca enorme que possuo. Tudo isso é capital acumulado e eu cobro os juros capital e do meu talento”.
Ouso inquirir de V. Ex. o seguinte: “Quem sustentava V. Ex enquanto estudava no colégio e na academia?” “Meu pai”, dirá V. Ex. e eu contesto: “Não. O pai de V.Ex. pregava o colégio, a academia, vestia V. Ex,; comprava livros, gastava dinheiro. Dinheiro é riqueza, representação social da riqueza produzida pelos trabalhadores. Enquanto V. Ex., felizardo, estudava, estudava, desenvolvia o seu espírito, milhares de crianças sem papai rico não podiam estudar, e não podiam estudar porque a sociedade os obrigava a trabalhar para viver nas oficinas, nas fazendas, nas senzalas. É verdade: no tempo de V.Ex. estudante acadêmico era a senzala, o negro escravo, os molequinhos que não tiveram a fortuna de nascer brancos como V. Ex. e filho de homem rico ou influente. V. Ex. se educou com as mortificações desses desgraçados, com o sangue do proletariado negro que sustentava senhores déspotas.
Conheço toda a Campânia de V. Ex. pela abolição. Confesso que dá me a impressão de uma defesa apenas de jurista, que se envergonha de ver a escravidão porque os juristas a condenam, as leis burguesas a repelem, os Estados a repudiam. Não vejo o homem que sente e se revolta. Exatamente como agora. Reconhece certas reivindicações porque os tratadistas o proclamam depois, a ameaça coletiva dos trabalhadores, os parlamentos o aceitam por não ter remédios, os capitalistas os toleram para evitar maior mal. Pois, os trabalhadores de hoje são os escravos de ontem. Eles continuaram a manter V. Ex., a trabalhar para os filhos e netos de V. Ex. São eles as mãos fabricadoras de tudo de tudo quanto concorreu para que V. Ex. desse aos filhos regalos e repimpa-mento. Enquanto os netos de V. Ex. vão à escola, ao colégio caro, ao cinema, a Petrópolis, os netos dos Ex-escravos vão para oficinas, para as obras, para o eito, produzir essa riqueza que V. Ex. aufere defendendo os Guinle ou os Matarazo. V. Ex. nem sequer pesquisa a origem dos cabedais a defender, frutos, em geral, da fraude e da torpeza. V. Ex. patrocina, com o mesmo sangue frio ou o mesmo calor profissional, o óbulo da viúva e a extorsão dos Mãozinhas Ladravazes. Contanto que os documentos estejam limpos. Em suma, extorque aos parasitas o que os parasitas roubam aos trabalhadores: Ora, isso seria impossível num regime sem exploração capitalista. E como os socialistas avançados, digamos antes, os anarquistas, querem tal regime, V. Ex. lhes recusa o seu apoio.
De deus uma: ou V.Ex. não é justo, ou não compreende o anarquismo. Porque, se fosse justo, sentiria a dor universal, palpitaria com o proletariado sofrendo a se revoltar-se-ia contra uma sociedade em que é possível um caso do “satélite”, (2) um Canudos, (3) uma guerra mundial. E se V. Ex., realmente, se magoa e se revolta, é anarquista de índole, e se permanece na defesa da igreja e do estado, é que não percebe o problema social. È, o que me parece. V. Ex. embrenho-se pelo direito a dentro, sem fio de Ariadane e foi devorado pelo Minotauro. Daí, dessa absoluta inconsciência da questão social, decorre os conselhos mirabolantes que transmite aos operários pela boca do Sr. Moraes.
Prega-lhe que acima do povo e das multidões, da força, do poder, do numero, das soberanias, esta o direito. V. Ex. não sabe historia, porque a historia conta que o direito sempre esteve com a força, o poder, as soberanias e quanto, por acaso, os povos e as multidões modificam o direito a seu favor, o fazem pela força dos trabalhadores contra os opressores, quer diretamente quer indiretamente, por meio de concessões de potentados em luta contra potentados.
Acima do direito, diz V. Ex. que está o dever. Não entendo. Ensinam nos livros que só a dever onde há direitos. V. Ex. está dando cincas inacreditáveis ou então os mestres erram. O melhor, porem, de tudo, é a asseveração seguinte: a sociedade tem suas bases eternas na historia, na autoridade, na religião, na pátria, na família, na acumulação, na inviolabilidade e na herança dos frutos do trabalho, e que as nações abandonam esses princípios se desonrariam, anarquizariam e dissolveram como a Rússia, este.
Bases eternas na historia! Lembro a V. Ex. que a historia não é eterna e o não são assim as bases da sociedade. Os operários de hoje, sabem muito bem que a base da sociedade é a exploração da minoria dos acumuladores dos frutos do trabalho contra os produtores de tais frutos, que ficam na miséria. Sabem muito bem, sem precisar de conselhos dos Evaristos de Morais, que o sustentáculo dessa sociedade são a religião, a autoridade, a família e a pátria, o direito de propriedade, a inviolabilidade mantida pela forço publica ( e V. Ex. diz que o direito esta acima da força!) das riquezas entesouradas por qualquer gatuno. V.Ex. não lhes ensina nada de novo. Sabem de tudo isso e é isso que lhes ensinam os propagandistas da sociedade nova. Mas é justamente contra esse arranjo que o proletariado se levanta, contra essas bases mesmas que protesta.
V. Ex. fala com patrono da classe parasita, sem suspeitar sequer que os da classe parasita, sem suspeitar sequer que os da classe parasitada não podem ouvir tais vozes, porque essas vezes são sempre falsas, enganadoras, ludibriantes. Enquanto fala assim milhares de assalariados exigem que se cumpra uma lei favorável aos criados de hotéis e botequins e o Sr. Chefe de Policia, em vez de cumprir a lei (ele que brasona de cumpridor das leis contra os operários perigosos), chama as duas classes empregados e patrões, um acordo pulha com todos os acordos já tentados e desfeitos.
Reconhecem que os frutos do trabalho são acumuláveis para a coletividade, não para o gozo de alguns espertos; reconhecem a injustiça clamorosa dos filhos privilegiados, que se instruem com o labor dos pobres, para serem grandes ricos, respeitados à custa deles; reconhecem o quanto vai de astúcia, cálculo, engordo, força, nos políticos sagazes que, firmes no sufrágio dos ignorantes e simplórios, se fazem socialistas, candidatos, representantes, dirigentes da mesma sociedade exploradora dos votantes.
V. Ex. dá mão forte ao Sr. Evaristo de Morais e faz bem. Os operários vêm nisso o apoio justo de um legista ao colega recém-famoso. Desgraçadamente, é quase certo que os operários brasileiros analfabetos quase todos, se apalermem diante dos conselhos mansos de V. Ex e votem no Sr. Evaristo de Morais. Pagam, assim, os hábeas-corpus e mais serviços grátis.
Sou de V.Ex. adm. Sincero e perigoso. (4)

José Oiticica.



(1) Na época em que este ártico foi escrito e publicado (26-2-1918), o tratamento dos homens mais ilustres era, sempre acompanhado de um V. EX., que hoje se tornaria massador. Assm, eliminamos31 vezes esse tipo de tratamento. Que nós perdoem os amigos, dessa “cortezia”.
(2) Trata-se do Navio Satélite, que serviu como prisão dos marinheiros amotinados e tantas discussões causou no parlamento e na Imprensa durante o governo de Marechal Hermes.
(3) Referem-se à guerra de canudos contra Antonio Conselheiro, o Tolstoi brasileiro, na opinião do Dr. Fábio Luz, descontadas as propulsões culturais. (ver “Ideólogos”- 1903).
(4) Publicado na 1.ª pagina do “Correio da Manhã”, 26-2-1918.

Extraído do livro:
Nacionalismo e cultura social
paginas:220 á 226
Autor: Edgar Rodrigues

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